As imagens do mundo das imagens: O estádio de futebol, a câmera fotográfica e a mulher nua

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Hoje já faz parte do senso comum a noção de que vivemos numa sociedade do espetáculo, ou ainda, numa sociedade das imagens, um mundo em que as imagens dominam. Até mesmo o Papa Bento XVI, num discurso que proferiu em sua recente visita à Palestina ocupada, protestou contra “as influências negativas do mundo do espetáculo”; segundo vossa santidade, a sociedade do espetáculo “de forma desumana explora em nosso mundo globalizado a inocência e a sensibilidade dos jovens e das pessoas mais vulneráveis” (Bol Notícias, 2009). Pelos próprios termos de que se constitui, essa é uma crítica conservadora, de apelo romântico: “inocência”, “sensibilidade” e “vulnerabilidade” das pessoas caem bem na boca de uma pastor do mundo, mas não de um crítico social; vindo de quem vem, sabe-se bem que essa é uma crítica moralista, tão moralista e conservadora quanto os é a própria sociedade do espetáculo. A adesão pontifícia à suposta crítica do “mundo do espetáculo” santifica – e, portanto, leva ao seu ápice – uma tendência crescente nos últimos anos a banalizar a crítica revolucionária, anticapitalista e comunista, feita desde os anos 50-60 por Guy Debord e seus camaradas da Internacional Situacionista. Essa é, aliás, uma tendência presente desde os anos 80. Em 1988, em seus Comentários à sociedade do espetáculo, Guy Debord (1992, p. 19) escreveu algo a esse respeito:
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O poder do espetáculo, que é essencialmente unitário, centralizador pela força mesma das coisas, e perfeitamente despótico em seu espíri-to, se indigna frequentemente ao ver constituir-se, sob seu reino, uma política-espetáculo, uma justiça-espetáculo, uma medicina-espetáculo ou, do mesmo modo supreendentes, “excessos midiáticos”.
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Segundo Debord, nessa crítica da parte que deixa intacto o todo, o espetáculo é pensado como o “excesso do midiático”, ocorrendo, “muito frequentemente”, de os senhores da sociedade se declararem “mal servidos por seus empregados da mídia; mais frequentemente, reprovam à plebe dos espectadores sua tendência a entregar-se sem moderação, e quase bestialmente, aos prazeres midiáticos” (Debord, 1992, p. 19). Tal é, justamente, sabemos bem, o caso de Bento XVI.
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Mas o que vem a ser então o espetáculo, na perspectiva de Guy Debord? O que sua teoria crítica do espetáculo pode nos dizer do inegável fato de que vivemos numa sociedade que se caracteriza pela produção e reprodução de imagens? O que, enfim, quer dizer “imagem” e em que sentido, para Debord, podemos dizer que vivemos num mundo das imagens?
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RETRATO DA ALIENAÇÃO

Essa multidão chinesa, disposta de tal modo que compôs em si mesma um retrato de Mao, pode ser considerada como um caso-limite do espetacular concentrado do poder estatal, aquele que “na zona subdesenvolvida... reúne na ideologia e, no extremo, num só homem, todo o admirável... que deve ser aplaudido e consumido passivamente”. Aqui a fusão do espectador e da imagem a ser contemplada parece ter atingido sua perfeição policial. Ao acreditar útil, algum tempo depois, ir ainda além desse grau de concentração, a burocracia fez a máquina ir pelos ares.

[Internacionale Situationniste, nº 11, p. 5 (outubro de 1967)]


Em A sociedade do espetáculo, obra publicada em 1967, Guy Debord tem a pretensão de apresentar uma teoria crítica do capitalismo mais desenvolvido, ou seja, de uma etapa (ou fase) da sociedade produtora de mercadorias (a sociedade capitalista), na qual a lógica do trabalho assalariado estendeu-se à totalidade da vida cotidiana. Isso quer dizer que, em sua etapa espetacular, o capitalismo leva à imediatidade do vivido a mesma natureza contemplativa, passiva e hierárquica que é própria ao trabalho alienado; com isso, o capitalismo espetacular traz consigo uma dupla expropriação: da autonomia da atividade e da comunicatividade da linguagem, expropriação esta que, no âmbito da produção mercantil, é essencial ao trabalho assalariado. Essa expropriação tão central à produção capitalista de mercadorias emerge à esfera cotidiana da circulação mercantil quando esta mesma se impõe como forma social dominante das experiências dos indivíduos. Em outras palavras, a sociedade do espetáculo é, simplesmente, o capitalismo contemporâneo, no qual toda a cotidianidade está inteiramente submetida às rela-ções de troca privada, à compra e venda de mercadorias. A esse propósito, Debord e os situacionistas se referem às mais imediatas experiências e relações práticas dos indivíduos: o consumo quantitativo do tempo no trabalho e no lazer, a banalização quantitativa e destrutiva do ambiente urbano e natural, a abstração do habitat, o empobrecimento dos objetos industriais de uso cotidiano e de frui-ção estética, a locomoção espacial, as relações inter-subjetivas, a memória histórica, a pesquisa científica, o desenvolvimento técnico...
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Eles localizam na vida cotidiana a extensão e o aprofundamento da alienação e da reificação que Marx, no conjunto de sua obra, constatou como inerente à produção capitalista. N’O capital, essa constatação teórica ganha sua expressão mais forte no conceito de caráter fetiche da mercadoria, fetichismo que se estende ao dinheiro e ao capital. Sob essas relações sociais que têm por fim a produção do valor, e mais ainda, do valor que se autovaloriza, do dinheiro que se transforma em mais dinheiro, portanto, que têm a reprodução do capital como fim em si mesmo, os homens não têm controle sobre suas próprias atividades e relações sociais. Por isso Marx as nomeia de relações sociais fetichistas, porém não no sentido que os iluministas europeus davam no século XVIII às religiões pagãs da África e da América, isto é, como ilusões da consciência. Certamente, o fetichismo inerente às relações capitalistas produz uma consciência ilusória, invertida, pois toma por natural o fato de que as atividades e relações sociais se emancipem dos indivíduos, ao invés de tomá-lo por histórico, por socialmente produzido. Contudo, para Marx, e assim também é para Debord e os situacionistas, essa é uma ilusão objetiva, pois resultado de uma inversão prática existente fora das consciências dos indivíduos, pois de fato, e não apenas na consciência, a realidade social produzida pelos homens – coisas, relações sociais etc. – torna-se independente deles e passa a dominá-los com a objetividade de uma força natural.

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Mas a teoria crítica desenvolvida pelos situacionistas, e por Debord em particular, não apenas tem como centro a crítica do fetichismo da mercadoria; mas, justamente na determinação fetichista que se lhes apresenta como central à produção mercantil, os situacionistas indicam que são inseparáveis, na expropriação capitalista, a alienação da atividade e a alienação da comunicação entre os indivíduos. Perfazendo a análise de Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, podemos acrescentar, às formas da alienação ali expostas – a saber, a alienação do objeto produzido, da atividade produtiva (o próprio trabalho) e do gênero humano –, também a alienação desta atividade tão própria ao gênero quanto o é o próprio trabalho: a alienação da linguagem em sua potência comuni-cativa. Com Giorgio Agamben (1991), podemos dizer que a crítica situacionista do capitalismo mais desenvolvido conduz a uma verdadeira inovação teórica da crítica da economia política ao demonstrar que ao fetichismo da produção mercantil era e é imanente não apenas a alienação do trabalho, mas também, e de um modo tanto quanto essencial, a alienação da linguagem.


amo minha câmara porque amo viver
registro os melhores momentos da existência
eu os ressuscito à vontade em todo seu brilho

A DOMINAÇÃO DO ESPETÁCULO SOBRE A VIDA

Essa publicidade da câmara Eumig (verão de 1967) evoca muito justamente a glaciação da vida individual que se inverteu na perspectiva espetacular: o presente é vivido imediatamente como lembrança. Por essa espacialização do tempo, que está submetido à ordem ilusória de um presente acessível como permanente, o tempo e a vida foram conjuntamente perdidos.

[Internacionale Situationniste, nº 11, p. 57 (outubro de 1967)]
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Como sabemos, do ponto de vista do materialismo histórico, o que é próprio ao gênero humano é sua atividade prática, sua autoconstrução através de uma atividade sensível-material que, ao produzir um mundo humano histórico-social distinto do mundo natural, produz ao mesmo tempo o homem como ser histórico-social. A tese específica de Debord e dos situacionistas é que a expropriação desta atividade, quando ela se torna alienada, quando a própria força de trabalho se torna – no trabalho assalariado – uma mercadoria, deveria e deve ter por conseqüência a expropriação da linguagem comunicativa. No dizer de Marx e Engels (1984, p. 33-34), “a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim”. Como atividade prática social, a linguagem é inseparável, para o bem e para o mal, de toda prática social. Ora, se toda prática social é comunicativa, dando-se assim pela mediação da linguagem, uma prática social alienada – porque fundada no trabalho alienado – deve trazer consigo, em conseqüência, não apenas uma “consciência invertida”, uma “falsa consciência”, como dizem Marx e Engels, mas também, nisto mesmo, uma “consciência real prática” alienada, ou seja, uma linguagem alienada, como acrescentam Debord e os situacionistas.
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Mas essa dimensão – digamos assim – “lingüístico”-comunicativa da alienação do trabalho assalariado só pode ficar clara – e não primeiramente em teoria, mas no vivido – quando o próprio desenvolvimento capitalista estende as características do trabalho alienado ao conjunto da vida social, isto é, quando o trabalho em sua forma alienada realiza, nas palavras de Debord (1998, § 10), a “ocupação total da vida cotidiana”; justamente aí, a alienação do trabalho se de-monstra ser “o contrário do diálogo” (idem, § 18). Essas teses, Debord as sintetiza no § 26 de A sociedade do espetáculo, quando afirma: “com a separação generalizada do trabalhador e de seu produto, perde-se todo ponto de vista unitário da atividade realizada, toda comunicação direta entre os produtores [...] [e] a atividade e a comunicação se tornam o atributo exclusivo da direção do sistema”.
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Se compreendermos assim a teoria debordiana do capitalismo contemporâneo, aproximamo-nos com mais rigor do que Debord e os situacionistas chamavam de espetáculo. O etmo da palavra espetáculo é o verbo latino espectare, verbo este que remete a um acompanhamento passivo de algo pela visão. E, de fato, já no primeiro texto da Internacional Situacionista (1997, p. 699), intitulado Informe sobre a construção das situações e sobre as condições de organização e da ação da tendência situacionista internacional, Debord afirma: “É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio do espetáculo: a não-intervenção”. Se a não-intervenção (como passividade e contemplação) é o princípio do espetáculo (tanto artístico quanto social), a ambos é inerente a exclusão da potência comunicativa da linguagem na forma da comunicação direta. Ora, essas são duas características que, aproximadamente, Freud indica também no sonho do indivíduo, e que fazem do sonho uma experiência regressiva, arcaica. Para o fundador da psicanálise, o sonho procede a duas formas de regressão que são centrais à caracterização que Debord apresenta do espetáculo: a primeira é que o sonho é uma regressão formal, pois inverte a condução das energias psíquicas, as quais, no estado de vigília, se movem do inconsciente e/ou do pré-consciente em direção à atividade motora, à sua externação prática, enquanto no sonho se dirigem regressivamente, retroversamente, ao sistema perceptivo; a se-gunda é que a satisfação onírica do desejo inconsciente, para furtar-se à censura, inverte a relação entre linguagem e imagem, regredindo à forma arcaica do domínio da imagem sobre a linguagem, impedindo que o desejo que aí se satisfaz seja lingüisticamente compreendido pela consciência, e apenas imageticamente percebido (Freud, 1987, p. 500). Se ao sonho cabe a satisfação do desejo que a censura oblitera, é somente sob a condição de que essa satisfação ocorra apenas perceptivamente, imageticamente, e não ativamente, no mundo exterior. Nesse sentido, o trabalho do sonho consiste em transformar o desejo inconsciente em imagens percebidas e perceptíveis; é essa a satisfação que lhe é permitida pela censura, e se trata, portanto, de uma satisfação alucinatória, através de uma descarga de energia psíquica em termos perceptivos. A regressão formal que opera aí, ao conduzir as energias psíquicas de volta ao sistema perceptivo (que, segundo Freud, é responsável pela recepção das excitações psíquicas provindas do mundo exterior), afastando-a da motilidade e da atividade externa, é justamente o que viabiliza a regressão imagética. Deste modo, o domínio da imagem sobre a linguagem é inseparável, no sonho, do domínio da percepção sobre a motilidade, sendo essas duas das condições pelas quais o sonho pode cumprir sua tarefa de nos fazer dormir.
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O PONTO CULMINANTE DA OFENSIVA DO ESPETÁCULO

Essa imagem foi bastante observada quando ela passou, em outubro de 1967, no canal protestante da televisão holandesa. Seu diretor, que é um antigo pregador, declarou então: “Nós queremos mostrar que mulheres nuas podem ser muito belas”. Pode-se admitir que a inversão espetacular da vida real atingira aí o cúmulo inultrapassável. Em sua segurança crescente, os experts dos mass media se propõem a revelar ao gado que os contempla uma verdade que, de outro modo, lhe teria sempre escapado; e eles se gabam dessa contribuição ao progresso cultural das multidões, as quais estão persuadidos de terem reduzido a uma passividade definitiva e absoluta. E, é claro, lhes entrega essa realidade, após as outras, precisamente sob a forma em que ela escapa a todo uso concreto, a toda comunicação real, atrás da vitrine do espetáculo inacessível que “se encarregou da totalidade da existência humana”. Como para confirmar a pensamento dialético de Clausewitz, o espetáculo, no momento em que impulsionou a tão longe sua invasão da vida social, vai conhecer o começo da inversão da relação de forças. Nos meses seguintes, a história e a vida real retornaram ao assalto do céu espetacular. E essa contra-ofensiva não cessará antes do fim do mundo da separação.

[Internacionale Situationniste, nº 12, p. 50 (setembro de 1969)]

“O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono”, diz Debord (1998, § 21). Como o sonho, o espetáculo é duplamente regressivo, ao amarrar numa mesma experiência de alienação, a passividade e a contemplação: passividade que transforma a atividade prática em gozo e satisfação perceptiva, alucinatória, e contemplação que nos reconduz da linguagem co-municativa à mudez do espectador. Se quisermos, é o bebê arcaico que, assim como no sonho, retorna no espetáculo, buscando uma satisfação passiva de suas carências. Essas carências, produzidas sob a forma fetichista da produção de mercadorias, se apresentam, para Debord, não como desejos inconscientes, mas como necessidades inconscientes do sistema econômico, como constrangimentos de uma força arcaica que são as próprias relações econômicas capitalistas, emancipadas dos indivíduos e a eles sobrepostas. Numa das passagens mais fundamentais de A sociedade do espetáculo, Debord afirma, acerca do capitalismo espetacular: “O mais moderno é também aí o mais arcaico” (idem, § 23).
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Se o espetáculo é, como diz ainda Debord, não “um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (idem, § 3), assim o é enquanto se constitui de imagens arcaicas, que expressam a muda passividade contemplativa do homem contemporâneo. No momento em que lê esse último parágrafo citado no filme A sociedade do espetáculo, Debord (1994, p. 67) apresenta a imagem de uma assembléia de operários, que ouvem com des-contentamento e desprezo, embora em silêncio e passivos, o discurso de um dirigente sindical na CGT francesa em maio de 1968. Nessa cena, a imagem arcaica que medeia a relação entre aqueles indivíduos é justamente o monopólio da palavra pela representação sindical hierárquica (necessariamente hierárquica); esse monopólio da palavra é ele próprio uma relação social, constituída de passividade e contemplação, por isso mesmo, extensão da lógica do trabalho assalariado para as relações dos trabalhadores sindicalizados com sua representação sindical.
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No parágrafo em que afirma a identidade entre o moderno e o arcaico no espetáculo, Debord (1998, § 23) diz ser o espetáculo “a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida”. Essa definição ilumina aquela que, logo no início do livro, ele dá para o espetáculo: este seria um “pseudomundo à parte, objeto de exclusiva contemplação”, um “mundo da imagem autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si pró-prio” (idem, § 2). Assim, podemos indicar que o sentido que Debord empresta à noção de “imagem” é essa relação social em que as forças práticas humanas se separam do próprio homem, em que uma parte do mundo prático humano se independentiza, passando a monopolizar toda atividade e toda palavra, impondo-se como objeto de contemplação passiva; é, também por isso, um mundo falso, e que mente para si mesmo, pois é um mundo em que a atividade efetiva do produtor é expropriada pelo seu produto, que, assim, se torna no sujeito fantasmagórico de toda atividade social.
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A imagem, no sentido debordiano, não diz respeito, em primeiro lugar, à imagem sensível, visível. É importante afirmar isso para que afastemos Debord e os situacionistas de qualquer suspeita de aversão metafísica da imagem, no seu aspecto sensível, visível, algo semelhante a um platônico vulgar que encontra em toda imagem um simulacro, um falseamento do real. O fato de que o seu primeiro experimento fílmico tenha sido produzido com apenas duas imagens (mas não sem imagens!), uma tela branca e uma tela negra que se sucediam, aliado ainda a uma leitura ligeira de A sociedade do espetáculo, certamente contribuiu para essa suspeita. Contudo, é preciso observar também que todos seus restantes filmes utilizam imagens, umas filmadas por ele mesmo, outras tomadas de outros autores; mas essas imagens deixam de ter um movimento próprio, sendo submetidas a uma colagem cujo sentido se encontra no texto que é lido. No § 36 de A sociedade do espetáculo, Debord opõe claramente a imagem e o sensível: no espetáculo, diz ele, “o mundo sensível se encontra substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensí-vel por excelência”. Essa passagem é fundamental para o esclarecimento do estatuto da imagem na teoria crítica do espetáculo, pois nos indica que as imagens a que se refere são expressões de uma força supra-sensível, pois existente acima do mundo sensível, e que, contudo, se impõe ao mundo sensível, apresentando-se como sensível, aliás, como o próprio sensível. Se a imagem, no sentido debordi-ano, não é primeiramente o sensível, mas o supra-sensível, é porque a imagem é, nessa teoria, a força abstrata e fetichista do valor econômico, em busca de sua autovalorização; noutra passagem, Debord diz justamente que o espetáculo “é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem” (idem, § 34). Mas, notemos, o capital que se faz imagem é uma força supra-sensível que se faz sensível, que se impõe ao mundo sensível dos objetos, do espaço, do uso do tempo etc., fazendo-se reconhecer aí como o único sensível a que passamos ter acesso.
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Ocorre aí uma espécie de retorno do supra-sensível ao sensível, retorno do qual resulta um domínio da economia sobre a aparência sensível do mundo social dos homens, fazendo com que esta aparência social se torne em aparência da economia capitalista. Debord fala num “monopólio da aparência” pelo espetáculo (idem, § 12). Isso acontece justamente porque todo este mundo sensível – o mundo da vida cotidiana – no qual vivemos e nos relacionamos (e não há outro em que possamos viver e nos relacionar), se transformou todo ele na esfera aparente da circulação mercantil; ele se torna a esfera aparente na qual se manifesta, submetendo-a, o movimento de produção e reprodução do capital. Deste modo, ocorre uma profunda transformação na natureza sensível deste mundo aparente no qual vivemos, que passa assim a ser a aparência da economia; mas quando a aparência social torna-se toda ela a aparência da economia, com a vida cotidiana submetida às trocas mercantis, o capital se torna imagem, se torna aparência sensível, isto é, manifesta o seu poder e sua presença na vida social mais imediata. O capital que se faz imagem não apenas submete a si o mundo sensível, mas ele se mescla tão fortemente com ele que a lógica do mundo sensível passa a ser a lógica supra-sensível do capital. O capital que se deixa ver, em seu poder e sua presença, nas mais imediatas experiências sensíveis dos homens, do transporte à alimentação, é certamente o capital tornado imagem; mas, em conseqüência, o sensível se torna, em contrapartida, algo supra-sensível, cujo sentido está não nele mesmo, mas além. No mundo da mercadoria total, o espetáculo é assim a única coisa que pode ser vista.
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A conseqüência mais radical dessa transformação do mundo sensível aparente da vida cotidiana diz respeito à nossa sensibilidade, às nossas próprias faculdades perceptivas. O domínio da imagem sobre a atividade e a linguagem comunicativa é também o domínio do ver, da visão, sobre outras faculdades sensíveis dos homens, tais como o tato e a escuta. Acerca disso, Debord afirma: “O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na vista o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; o sentido mais abstrato, e mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual” (idem, § 18). Assim, Debord indica a ocorrência no capitalismo contemporâneo de uma verdadeira mutação antropológica. O “espetáculo faz ver”, diz ele noutro lugar, um “mundo ao mesmo tempo presente e ausente”, “o mundo da mercadoria dominando tudo que é vivo” (idem, § 37). Em vários outros parágrafos, aparece essa mesma afirmação de que o espetáculo “faz ver”, “dá a ver”, “deixa ver”. Ora, fazer ver, dar a ver, deixar ver é uma atividade de um sujeito abstrato (a relação social capital, autonomizada dos homens), que impõe aos indivíduos (os espectadores) uma passividade que, em termos sensíveis, se expressa numa contemplação visual. Debord não deixa de alertar que o espetáculo “não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das téc-nicas de difusão massiva de imagens” (idem, § 5), e que o espetáculo “não é identificável ao simples olhar” (idem, § 18). De fato, pois sua denúncia não se dirige ao mundo visível-sensível enquanto tal, mas justamente ao domínio do sensível pelo supra-sensível. Mas esse mundo sensível dominado pelo supra-sensível, embora permaneça ainda sensível, torna-se tão abstrato quanto o supra-sensível que o domina; o que se impõe para ser visto e contemplado já um sensí-vel completamente transformado em sua própria natureza sensível, assim como a visão que o contempla já foi completamente transformada, até mesmo policialmente educada, pela abstração que se torna visível. O privilégio unilateral da visão, num mundo que não é mais o teatro das ações autônomas dos indivíduos, mas um mundo de objetos de exclusiva contemplação, resulta num desenvolvimento mutilado das faculdades perceptivas, de modo que a faculdade visual que aí se desenvolve unilateralmente torna-se uma faculdade perceptiva abstrata, pois separada da atividade, da comunicação e do domínio prático humano sobre seus objetos vistos. Ela se torna semelhante à intuitio metaphysica, à intuição contemplativa de objetos transcendentes. Por isso mesmo, no parágrafo seguinte ao último citado, Debord relaciona o domínio da visão sensível na sociedade do espetáculo à visão contemplativa da metafísica ocidental: “O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas categorias do ver”; e complementa ao final: “Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se de-gradou em universo especulativo” (idem, § 19).
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